Êxodo

Imagem, Blog da Farm

Chego ao guichê na rodoviária 35 minutos antes do ônibus sair. Pela primeira vez, chego tão cedo. Reparo logo que a caixinha de “críticas e sugestões” foi arrancada da parede. Lá só resta a mancha suja do que há pouco havia ali.

Após um “boa noite” sem resposta, peço a passagem para Recife. Saindo 00:15h, chego a Recife pouco antes das 5h. Lá, espero 3h e meia até a hora do vôo e em 1h e 10min consigo estar em Fortaleza.

Se tudo funcionar direitinho, em 10h e 10min estou em casa, tomando café com leite e tapioca com queijo coalho, matando toda saudade e fingindo que é um café da manhã como todos os outros, como o de sempre, de todos os dias.

Mas nem tudo sempre funciona direitinho. Se não houver mais passagem pra embarcar pra Recife a meia noite, as opções se restringem. Não dá pra confiar “nas referências” de um taxista desconhecido. Você será ali uma menina, com sono, após uma semana inteira de trabalho, para percorrer 280 km de madrugada com 2 ou 3 homens desconhecidos. A oferta ali até houve. Um Uno Mille com 3 homens já agendados. Além de tudo isso, já desconsidere qualquer possibilidade de descansar no trajeto.

Bem, resolvi então aguardar se nos minutos restante dava sorte e alguém desistia do bilhete. 5 minutos, 10 minutos. Diálogo intenso das atendentes da Real Alagoas. Risadas das atendentes. Fiz um questionamento. Resposta grosseira. Outra pergunta. Resposta com indiferença.

A 5 minutos do ônibus partir, sem nenhuma desistência, chega um rapaz tentando entrar no guichê. A porta trancada, ele gesticulava, pedindo atenção de uma das atendentes. Já interrompido o diálogo sobre as qualidades e defeitos do namorado de uma terceira, a atendente retrucou sem paciência qualquer coisa ao rapaz.

Ele entendeu que deveria entrar por outra porta e assim o fez. Solicitou ofegante uma passagem pra Recife no dito ônibus. Ela responde com desdém que não havia passagem. Ele questiona denovo; ela é grosseira. Ele faz um último questionamento, ela responde um “não tenho como criar vaga no ônibus, a menina ali [eu] também queria ir e não vai”. Além de tudo, tentou me retirar os 5 minutos restantes de esperança.

O rapaz, num instante de lucidez, conclui com um “tudo bem”. Agradece a gentileza e dá as costas. Ela retruca: “quer que eu faça o que?”

“Que seja ao menos educada já que cortesia não ficou pra você. Seja menos grossa de uma próxima vez que já ajuda.”

Ele saiu e ela ficou ali falando mal dele para a outra: louco, grosso, mal educado, mal amado etc. E eu, com a cabeça a mil por hora, pensando em todo o arsenal do Macgaiver para chegar a Recife, num rompante, que sequer me dei conta, respondi calmamente, quando vi, já estava falando:

“A gente só quer viajar”. Vocês é que nos torturam e maltratam sem motivo. Não era um bilhete em jogo, era um encontro, uma vida, uma saudade, uma família, um compromisso de trabalho. Ninguém ali sabia quem a gente era, não sabiam nada e estavam ali a postos pra dificultar de todo modo, nem que fosse com uma grosseria gratuita. Falei mais, falei muito. Coloquei todas as minhas queixas pra elas. Pedi desculpas pela sinceridade, mas “vocês são novas, alegres e até bonitas, mas são grossas e insensíveis, sem necessidade”.

Eu, na minha facilidade de dar feedback e minha forma peculiar de ser clara e me fazer entender, disse tudo numa tranquilidade que nem sabia que tinha. As duas calaram. Ouviram, surpresas. Não disseram sequer um “ai”.

Até alguns segundos, por estar ali ouvindo as histórias engraçadas, eu era cúmplice delas. Naquele momento, eu colocava pra fora todos os destratos de quase 2 anos de Real Alagoas – um monopólio da linha Maceió-Recife que se mantém por motivos que só os mistérios alagoanos conseguem definir.

Era a atendente troglodita do horário da manhã, o grosso do horário da tarde, o irônico do guichê em Recife, o babaca que se nega a atender as ligações, o motorista que fica 2h parado na estrada e todos os escritos deixados na caixinha de críticas e sugestões nesse tempo sem qualquer retorno. Era ali toda a minha sensibilidade humana e toda a minha fragilidade e impotência a meia noite colocada translucidamente a elas, num desabafo.

Sai de lá e não houve outra forma, eu era aquela que elas não conheciam: crise de choro incessante de quem só queria ir ao aniversário do pai. De um ser humano, de carne e emoções, cansado, porém determinado, que costuma investir 19h de um cansativo trajeto em nome de 30h de afeto em casa.
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Elas lá? Também não sei quem elas são.

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